JOSÉ TELO ZUQUETE
Enquanto a vontade teime em não apagar da memória os amigos com quem cruzámos.
"... O Hotel do Cerro foi inaugurado num sábado dos fins de Maio, tempo morno e sol brilhante, época de figos lampos.
Chegados na véspera, ao cair da noite, os primeiros turistas encontraram – muitos deles pela primeira vez – um Algarve de céu limpo, sem uma ponta de vento e um mar estanhado que parecia artificial.
- Havia uns dias bons que ninguém dormia – intercalou o arquitecto.
Operários, encarregados e técnicos, todos numa fona, em pé à força de nervos e de álcool, olheiras fundas e olhos a brilhar.
Um mês louco.
Lembro-me, em particular, das olheiras do João – já sem gesso e cheio de irras! E a inventar palavras novas de dez em dez minutos – das rugas do Bernardo, do Carlos a cirandar como um tigre enjaulado, mas nenhum de nós devia andar com muito boa cara.
O pessoal do hotel a chegar aos poucos, as instalações a arrancar, uma a uma, as asneiras a saltar como moscas, curto-circuitos, encravamentos, alterações de última hora na cozinha, na recepção, na central telefónica, nos bares, câmaras frigoríficas com termostátos surrealistas, ventiladores a desintegrarem-se ao fim de uns minutos de uso.
Quando o Morrison – esteve lá o mês inteiro – dizia: - arquitecto, parece que temos um problema... - havia de ser uma daquelas grandes gaitas que chateavam meio-mundo até, saberia Deus, quando.
Não era só ele que via, todos víamos – e havia coisas que era possível – ainda – fazer e outras que não. E era com essas que eu dormia todas as noites.
E acrescentar – acrescentar, irra! - acrescentar tudo o que esquecera, prateleiras aqui e acolá, depósitos para as coisas mais diversas, luzes, avisadores, relais, guias, defesas, protecções, suspensões.
Meses que só se podem viver uma vez.
O Moura pintou e envernizou a noite inteira até, às seis da manhã, ir tomar um duche e vestir o fato inteiro e o colete de ocasião, o Chapim, teimoso, arrastou com ele a equipa inteira de electricistas durante quatro dias e quatro noites e só parou depois de ter encontrado todos os curto-circuitos e verificado a totalidade da instalação, ponto a ponto, caso a caso.
O Carlos e o João estiveram em todo o lado, o Tavira e o Oliveira desdobraram-se, o Bernardo pisava duro – duríssimo – eu larguei uns porras! Altos demais.
Parecia que tinhamos fogo debaixo do rabo.
Entretanto desembarcaran no hotel as coisas mais variadas – desde as bombas para o tratamento de água das piscinas até aos talheres para o restaurante e às bebidas para os bares.
A Lija comandava um batalhão de cortineiras, mergulhadas até ao pescoço num mar de tecidos variados, onde só elas se entendiam.
Chegavam impressos para a contabilidade e para a recepção, mesas, cadeiras e almofadas, tachos e panelas, máquinas sortidas, pratos aos milhares, grandes e pequenos, toalhas de todos os formatos, cinzeiros, candeeiros, gravuras, pinturas – e duas tapeçarias, manuseadas como tesouros do Oriente.
Um mês louco.
Lembro-me, em particular, das olheiras do João – já sem gesso e cheio de irras! E a inventar palavras novas de dez em dez minutos – das rugas do Bernardo, do Carlos a cirandar como um tigre enjaulado, mas nenhum de nós devia andar com muito boa cara.
O pessoal do hotel a chegar aos poucos, as instalações a arrancar, uma a uma, as asneiras a saltar como moscas, curto-circuitos, encravamentos, alterações de última hora na cozinha, na recepção, na central telefónica, nos bares, câmaras frigoríficas com termostátos surrealistas, ventiladores a desintegrarem-se ao fim de uns minutos de uso.
Quando o Morrison – esteve lá o mês inteiro – dizia: - arquitecto, parece que temos um problema... - havia de ser uma daquelas grandes gaitas que chateavam meio-mundo até, saberia Deus, quando.
Não era só ele que via, todos víamos – e havia coisas que era possível – ainda – fazer e outras que não. E era com essas que eu dormia todas as noites.
E acrescentar – acrescentar, irra! - acrescentar tudo o que esquecera, prateleiras aqui e acolá, depósitos para as coisas mais diversas, luzes, avisadores, relais, guias, defesas, protecções, suspensões.
Meses que só se podem viver uma vez.
O Moura pintou e envernizou a noite inteira até, às seis da manhã, ir tomar um duche e vestir o fato inteiro e o colete de ocasião, o Chapim, teimoso, arrastou com ele a equipa inteira de electricistas durante quatro dias e quatro noites e só parou depois de ter encontrado todos os curto-circuitos e verificado a totalidade da instalação, ponto a ponto, caso a caso.
O Carlos e o João estiveram em todo o lado, o Tavira e o Oliveira desdobraram-se, o Bernardo pisava duro – duríssimo – eu larguei uns porras! Altos demais.
Parecia que tinhamos fogo debaixo do rabo.
Entretanto desembarcaran no hotel as coisas mais variadas – desde as bombas para o tratamento de água das piscinas até aos talheres para o restaurante e às bebidas para os bares.
A Lija comandava um batalhão de cortineiras, mergulhadas até ao pescoço num mar de tecidos variados, onde só elas se entendiam.
Chegavam impressos para a contabilidade e para a recepção, mesas, cadeiras e almofadas, tachos e panelas, máquinas sortidas, pratos aos milhares, grandes e pequenos, toalhas de todos os formatos, cinzeiros, candeeiros, gravuras, pinturas – e duas tapeçarias, manuseadas como tesouros do Oriente.
Um mês frenético.
- Passado um tempo – disse o arquitecto – torna-se difícil entender como foi possível fazer-se o que se fez.
Não respondi e ele continuou:
- Estados de nervos, talvez... A fúria de acabar.
Um mês de fúria? Uma ou duas directas todos nós fizémos, mas um mês?
- Era uma fúria antiga – disse, quando lhe perguntei – não era uma fúria de um mês.
E sem olhar para mim:
- Era um elástico esticado, muito esticado havia dois anos, quase a partir. Ou dávamos cabo da obra ou a obra dava cabo de nós. ..."
In "Cerro Lamy"
Arquitecto José Telo Zuquete (1/8/1939 - 26/2/2008)
Este trecho pertence a um dos vários livros por ele escritos entre 2002 e 2007 que muito gostaríamos de ver publicados, especialmente a "Alma" e "Cerro Lamy".
Dói perder um amigo.
7 comentários:
Conheci o José Zúquete há uns 40 e tal anos. Em Lagos onde eu passava férias com a família Tinha eu 15 anos e ele 22, acabado de se formar. Nos dois anos seguintes visitava-nos em Lisboa. Foi um bom amigo e companheiro, diferente no seu modo de ser. Depois perdemo-nos. Encontrei-o 20 anos depois, tomámos um café e pusemos a conversa em dia. Nunca mais o vi.O que lhe aconteceu? Gostava que alguém me falasse dele. Não tenho amigos comuns.Graça Aníbal
Graça Aníbal:
Eu e a Teresa tivemos o privilégio de, durante anos, partilhar longos e inesquecíveis momentos de amizade com o José ( Zuqt, como lhe chamávamos ). A crítica mordaz e esclarecida, as longas estórias feitas de muito saber e cultura, as aventuras que só um imaginário muito rico poderia conceber colocam o Zuqt na galeria de seres que jamais esqueceremos.
Quando tiver oportunidade passe aqui por Quarteira e poderemos falar um pouco deste grande amigo comum.
Hoje, neste blogue, descobri que tinha perdido um amigo muito especial. Até sempre!
È muito bom saber que o meu pai tinha amigos tao especiais.. por pura casualidade escrevi o seu nome na internet e vim aqui parar.
um grande homem e sem duvida o mais inteligente que alguma vez conheci. um beijo grande Sofia zùquete
Fantástico...
Há muito poucos "Zuquetes" no Planeta Terra, e estando curioso em descobrir mais "exemplares" com este apelido muito peculiar, encontrei algo escrito pelo meu Tio, que já partiu em paz...
Algumas pessoas diziam que tinha um feitio estranho para conseguir viver em familia,..., não aguentava muito tempo com a mesma pessoa...., mas analizando a sua infância e adolescência, tudo fica mais claro e transparente....
Em adulto, tudo pelo que passámos na primeira década da nossa vida, se vai refletir muitos anos mais tarde, com consequências por vezes dolorosas para esse Ser Humano, como nas relações com que ele se rodeia.
Partiu em paz...mas deixa muita saudade...beijo do seu sobrinho...
Caro Peter:
Creio que não nos conhecemos pessoalmente mas direi que foi uma honra rara conhecer e ser amigo do Zé.
O Zé, escrevia todos dias, lia ao telefone, trocávamos impressões,falavamos de tudo...
Um dia recebi pelo correio esta linda prosa poética.
Jamais esquecerei o "AMIGO" que tive nas horas boas e más.
PRAIA DA LUZ
Toca Schubert, interminável, sonata após sonata, da lareira restam brasas.
É tarde- muito tarde. Lá fora está frio, céu limpo de Inverno, Orion bem a sul. Em casa cheira a lenha e a fumo.
Tarde, televisão desligada.
Gostava de te escrever um poema vagaroso
Com palavras longas
e lentas
e líquidas
a escoar-se devagar como as cores do por-do-sol
um poema longo e lento como o tempo
Devagar, como quem não quer
Gostava que fosses o meu mar
o meu campo
o meu vaso
a minha flor
Gostava que fosses o bosque onde me perca
o gerânio
a buganvília, a roseira e o hibisco
Queria-te
em flor
branca rosa e amarela
Queria-te esteva, murta e zimbro
queria-te árvore a balouçar
queria-te pedra
queria-te serra
queria-te areia
e mar.
José Telo Zúquette
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