Enquanto a vontade teime em não apagar da memória os amigos com quem cruzámos.
"... O Hotel do Cerro foi inaugurado num sábado dos fins de Maio, tempo morno e sol brilhante, época de figos lampos.
Chegados na véspera, ao cair da noite, os primeiros turistas encontraram – muitos deles pela primeira vez – um Algarve de céu limpo, sem uma ponta de vento e um mar estanhado que parecia artificial.
- Havia uns dias bons que ninguém dormia – intercalou o arquitecto.
Operários, encarregados e técnicos, todos numa fona, em pé à força de nervos e de álcool, olheiras fundas e olhos a brilhar.
Um mês louco.
Lembro-me, em particular, das olheiras do João – já sem gesso e cheio de irras! E a inventar palavras novas de dez em dez minutos – das rugas do Bernardo, do Carlos a cirandar como um tigre enjaulado, mas nenhum de nós devia andar com muito boa cara.
O pessoal do hotel a chegar aos poucos, as instalações a arrancar, uma a uma, as asneiras a saltar como moscas, curto-circuitos, encravamentos, alterações de última hora na cozinha, na recepção, na central telefónica, nos bares, câmaras frigoríficas com termostátos surrealistas, ventiladores a desintegrarem-se ao fim de uns minutos de uso.
Quando o Morrison – esteve lá o mês inteiro – dizia: - arquitecto, parece que temos um problema... - havia de ser uma daquelas grandes gaitas que chateavam meio-mundo até, saberia Deus, quando.
Não era só ele que via, todos víamos – e havia coisas que era possível – ainda – fazer e outras que não. E era com essas que eu dormia todas as noites.
E acrescentar – acrescentar, irra! - acrescentar tudo o que esquecera, prateleiras aqui e acolá, depósitos para as coisas mais diversas, luzes, avisadores, relais, guias, defesas, protecções, suspensões.
Meses que só se podem viver uma vez.
O Moura pintou e envernizou a noite inteira até, às seis da manhã, ir tomar um duche e vestir o fato inteiro e o colete de ocasião, o Chapim, teimoso, arrastou com ele a equipa inteira de electricistas durante quatro dias e quatro noites e só parou depois de ter encontrado todos os curto-circuitos e verificado a totalidade da instalação, ponto a ponto, caso a caso.
O Carlos e o João estiveram em todo o lado, o Tavira e o Oliveira desdobraram-se, o Bernardo pisava duro – duríssimo – eu larguei uns porras! Altos demais.
Parecia que tinhamos fogo debaixo do rabo.
Entretanto desembarcaran no hotel as coisas mais variadas – desde as bombas para o tratamento de água das piscinas até aos talheres para o restaurante e às bebidas para os bares.
A Lija comandava um batalhão de cortineiras, mergulhadas até ao pescoço num mar de tecidos variados, onde só elas se entendiam.
Chegavam impressos para a contabilidade e para a recepção, mesas, cadeiras e almofadas, tachos e panelas, máquinas sortidas, pratos aos milhares, grandes e pequenos, toalhas de todos os formatos, cinzeiros, candeeiros, gravuras, pinturas – e duas tapeçarias, manuseadas como tesouros do Oriente.
Um mês frenético.
- Passado um tempo – disse o arquitecto – torna-se difícil entender como foi possível fazer-se o que se fez.
Não respondi e ele continuou:
- Estados de nervos, talvez... A fúria de acabar.
Um mês de fúria? Uma ou duas directas todos nós fizémos, mas um mês?
- Era uma fúria antiga – disse, quando lhe perguntei – não era uma fúria de um mês.
E sem olhar para mim:
- Era um elástico esticado, muito esticado havia dois anos, quase a partir. Ou dávamos cabo da obra ou a obra dava cabo de nós. ..."
In "Cerro Lamy"
Arquitecto José Telo Zuquete (1/8/1939 - 26/2/2008)
Este trecho pertence a um dos vários livros por ele escritos entre 2002 e 2007 que muito gostaríamos de ver publicados, especialmente a "Alma" e "Cerro Lamy".
Dói perder um amigo.